Portal CEN  *** Carlos Leite Ribeiro *** Morto ou Vivo? ***

 

 

"Vivo ou Morto" - de

Carlos Leite Ribeiro

 

 

 


Apreciação de


Ari Santos de Campos

 

 

Começo falando sobre o que mais me chamou a atenção: a provocação às brigas de Lena com Gustavo. Parece-me que, na vida real, há mulheres que não são muito chegadas a homens bonzinhos, acho até que elas gostam de serem um pouquinho judiadas. Não obstante, lendo isso, fez-me lembrar da vida conjugal de um casal amigo, que desde cedo, desde que se casaram há 40 anos, vivem a brigar. Eu nunca havia entendido muito bem o porquê disso, mas, certamente esta “Lena” consegue, do meu amigo, despertá-lo  para briga, e acabam de fato brigando. O curioso é que sempre brigam  e sempre estão de bem e felizes.
Na parte artística de sua obra, na trama, as partes humorísticas do “vivo ou morto”, não podiam ser melhores. Achei artisticamente muito bem tramada e cheia de graças.
O espaço/tempo, a casa de Lena, que ocorreu todo o desenrolar do drama “vivo ou morto” foi um lugar ideal para a fácil compreensão do leitor. Nenhuma dúvida pairou no ar, isso porque o espaço foi tão bem escolhido que nenhum outro lugar poderia ser melhor.  
Agora só me resta cumprimentá-lo e dizer-lhe que adorei ter essa oportunidade de ler amiúde o seu texto.
Saudações Literárias,
Ari Santos de Campos

 

 

“Vivo ou Morto?” – de Carlos Leite Ribeiro

 

 

Vamos simular a gravação de um Teatro Radiofónico (ou Rádio Teatro) muito em voga nos anos 50 /70. Em Portugal sempre houve grandes interpretes deste género de teatro, mais difícil que muita gente pensa.

 

Estamos num estúdio de gravação, já com o ensaio realizado. Vamos ver o que diz o realizador minutos antes de começar a gravação:

“Meus amigos, como já sabem mas nunca será demais repetir, “puxem” bem a voz para os ouvidos para poderem respirar melhor e sem ruído; prolonguem um pouco a última palavra para deixar a “deixa” ao companheiro; cuidado com o barulho das folhas de papel; sobretudo, não olhem uns para os outros para evitar o riso, que obriga a repetições.

A sonoplastia (*), além dos “efeitos especiais” regulou o volume dos microfones para as vossas vozes.

 

(*)A sonoplastia é responsável pela execução de efeitos especiais e fundos sonoros pedidos pela produção ou direção dos programas. O sonoplasta precisa ter sensibilidade, acuidade auditiva e criatividade. Na sonoplastia a música e os elementos sonoros são fundamentais na construção da imagem que se forma na mente do ouvinte.

O microfone Nº01 é para a “Lena”; o 04 para o Gustavo; o 03 para a sogrinha e fale pausadamente em tom irônico; o 02 para o polícia, médico e para o cangalheiro; o 05 para a florista e para a Dora; o 06 para a Narradora.

Se tudo correr bem e como sou muito generoso, fazemos dois intervalos para tomar café e retemperar os nervos.

E vamos ao trabalho, melhor, à gravação de:

 

 

“Morto ou Vivo? – de Carlos Leite Ribeiro

 

Narradora: - Há meses que o Gustavo e Lena trocavam e-mails e, por vezes, falavam pelo Skype. Moravam em cidades diferentes e não se conheciam. Para ele, Helena era um bem que lhe tinha aparecido depois de ter rompido o namoro de anos com sua namorada; para ela, era um modo para tentar esquecer o seu antigo namorado Bené, que sempre a maltratou. O namoro pela Internet tornou-se com o tempo algo intenso e para eles, parecia a coisa mais bela que lhes tinha acontecido. Ela considerava Gustavo o melhor homem que já mais contactara e tinha entrado profundamente em sua vida; para ele, Lena, seria a mulher mais perfeita que haveria nesta terra. Ambos consideravam o seu contacto como uma dádiva do destino.

Ao fim de alguns meses de contacto via Internet, resolveram um dia encontrarem-se pessoalmente num restaurante chinês, de uma cidade vizinha. A conversa prolongou-se e a certa altura, Gustavo olhou instintivamente para as belas pernas da empregada que estava a servir a sua mesa. Ela sentiu uns profundos ciúmes e levantou-se da mesa e saindo do restaurante. Depois de pagar o jantar, Gustavo foi ter com a Lena que já se encontrava junto ao carro. Depois de uma breve troca de palavras e com o incidente com as pernas da criada sanado, entraram no carro e ele propôs-lhe casamento.

Passaram meses nestes encontros quase furtivos e um belo dia, Lena convidou Gustavo ir a casa de sua mãe, para apresentá-lo. Embora contrariado, acedeu com receio de perder aquele amor.

Quando Lena apresentou o Gustavo a D. Renata, esta o olhou dos pés à cabeça, engoliu em seco antes de se pronunciar.

- Minha querida filha estás preste a correr enorme risco e a perderes a tua preciosa liberdade que tanto presas. Mas a vida é tua e eu não te quero (nem posso) contrariar-te. 

 

Um ano mais tarde…
 

Ao cair de uma tarde de um dia qualquer, o pacato cidadão Gustavo chegava a sua casa, depois de um estafante dia de trabalho, levando de braçado um enorme ramos de flores. Mete a chave na respectiva fechadura, dá a volta à chave, e entra em casa, chamando logo pela sua querida mulher...


Gustavo: -Lena! Leninhaaa! Onde estás tu, meu amor? Nem te via e já estava a ficar preocupado contigo. Olha o que o teu maridinho te trouxe hoje?! Vê, vê... Aqui está um lindo bouquet de lindas flores para a minha querida bonequinha!


Lena: - Olá. Olha lá, Gustavo, para que é essa porcaria que trazes debaixo do braço, não me dizes? Tira-me essas flores já, mas já daqui da minha vista! Que porcaria! Puufff, flores... Ainda se fosse outra coisa, digamos mais “palpável”...


Gustavo: - Mas... Leninha, meu grande amor, são flores, muito bonitinhas, só para ti, que és o meu grande e meu único amor!


Lena: - Aiii, mas que raiva! Olha lá, Gustavo, para quê esta gentileza toda?... Ou será para eu esquecer o que não tenho “há séculos?... Isto traz água no bico. Já te disse, tira-me essas “ervas” daqui!


Gustavo: - Estás muito enervadinha, meu amor! Tu sabes muito bem que eu te adoro, não queres é dares o braço a torcer...


Lena: - Eu sei?... eu sei, mas eu sei o quê?! Melhor, só sei é que não tenho “aquilo” que mais desejo há muito tempo. Daqui a pouco até me esqueço como se faz “aquilo” ! Tu, não deves de estar bom da cabeça...


Gustavo: - Então minha querida, meu grande amor, não te lembras que fazemos hoje... Puxa pela tua linda cabecinha ... Não te lembras? Fazemos hoje, um aninho de casados, de casadinhos!


Lena: - Fazemos um ano de casados? (ui, que desgraça...), e daí, onde estão meus direitos de mulher?...


Gustavo: - E daí?... Perguntas tu, minha querida Leninha?!...


Lena: - Com que então fazemos hoje um longo ano de casamento, direi a aturar-te! E tu ainda não tens vergonha de te lembrares desta tão triste data?... Ai, ai, a minha mãezinha é que tinha razão : A sua única e querida filhinha a casar com um “estojo” destes, que nem sabe ... Até tenho vergonha de dizer!


Gustavo: - Mas, minha queridinha, tu está a elaborar num enorme erro, pois eu tenho sido um marido exemplar. E isso que estás para aí a dizer, é simplesmente uma atitude minha para... Não te incomodar! Mas tenho sido exemplar na minha conduta!


Lena: - Tu exemplar?!  Com esse teu problema de não me “incomodares”, tens sido exemplar?! Tu não prestas é para nada, para nadinha! Nem só da comida se alimenta uma mulher!


Gustavo: - Continuas a ser injusta para mim, que sempre tenho procurado ser exemplar para contigo. Sou incapaz de olhar para outra qualquer mulher, pois só me interessa a minha adorada Leninha. Tenho sido bonzinho...


Lena: - Bonzinhoooo?... Ai muito bonzinho… Ai credo não me toque que me podes desafinar, ai credo! Olha lá que vida é que me tens proporcionado? Só me pagares a comida e o vestir? Isso, só, não chega! Escusas de estar a fazer para aí essa cara, que até me  pareces um palerminha! Mas que vida é que me tens proporcionado? Ai, a minha mãezinha é que tinha razão!


Gustavo: - Leninha, tu nunca estás contente com o que tens, melhor, nem sabes o bem que te rodeia! Eu... Eu tenho sido tão bonzinho para ti, ora vejamos: Lavo a roupa, aspiro a casa e, às vezes ainda te ajudo a estender a roupa e a fazer o comer. Que mais queres tu, meu amor?...


Lena: - Deixa-te dessas parvoíces! Olha lá, tu alguma vez tiveste alguma reunião com amigos? Ou fizeste serão até tarde... Para chegares a casa já de madrugada, bêbado e com vontade de implicares comigo?...


Gustavo: - Eu...?! Bem sabes que nunca, mas nunca fiz isso! Eu sempre cheguei a casa muito cedo, para poder estar o mais tempo possível junto à minha querida Leninha! Nunca fui um vadio nem um boémio! Tu sabes bem que sempre foi assim. E nunca gostei de amachucar ou incomodar o meu grande amor, nem sequer na cama! Tenho sido exemplar!


Lena: - Pois, pois (até me dá vontade de rir se a situação não fosse tão grave) ... Nunca chegaste a casa com uns valentes “copos”. O Gustavo sempre chegou a casa são e santificado como um menino de porcelana ... Assim, como é que eu posso discutir contigo, ficar muito zangada, furiosa mesmo e, depois fazer as pazes, com muitos abraços e beijinhos; e por fim acabar a zanga na cama (só a pensar nisto sinto-me excitada!). Mas não, tu não dás hipóteses: sempre a chegar a casa cedo e, depois de fazeres as tuas “obrigações domésticas”, cama com ele, sempre virado para o lado contrário ao meu, e toca a dormir! Às vezes até sinto vontade de te dar dois murros, para ver se reages!... Tu nem sequer vais ao futebol com os teus amigos!... Ai a minha mãezinha é que tinha razão – tu não prestas para nadinha!


Gustavo: - Mas o que tu queres? ... Eu sou mesmo assim, amorzinho! Quando chego a casa, gosto de ajudar a minha querida a fazer “coisas domésticas” e, depois como estou muito cansado, vou logo direitinho para a cama fazer soninho, sem incomodar a minha querida mulherzinha, a que adoro e seria incapaz de incomodá-la...


Lena: - Oh filho, tem juízo e deixa-te dessas tretas! Eu gosto tanto (ou gostava!) de ser “incomodada”... Tu nem uma vez só chegaste a casa com o dinheiro do ordenado a menos!

Gustavo: - Eu?! Fazer isso? Nunca! Tu bem sabes que te entrego o dinheiro todo, tudo o que ganho! A minha querida Leninha é que governa tudo, tudo, não é?...


Lena: - É siimmmmmm … Eu é que governo tudo, ou quase tudo (pois “aquilo” é que não governo não ...). Só gostava de saber como poderei discutir contigo, excitar-te, por acaso não me dizes? Eu, não casei com um homem, casei com uma irritante “perfeição”, digna de museu. Olha que eu não gosto “só” de ser “olhada” como se fosse uma boneca de porcelana! Ai a minha mãezinha é que tinha razão! ...


Gustavo: - Mas eu, querida...


Lena: - Mas o quê “querida”?! ... Olha lá, alguma vez me deste alguma palmadinha aqui no traseiro, ou apalpaste para sentires o meu coração a bater no peito?


Gustavo: - Euuu?... Nunca, mas nunca te dei palmadinha no teu traseiro, nem mexi no teu peito com receio de te machucar... Nem na... Tu sempre disseste que quando a tua mãezinha te batia, ficavas muito chocada com ela. Por isso não te dou palmadinhas!


Lena: - Não confundas o que não tem comparação alguma! Refiro-me aquelas palmadinhas “malandrecas e eróticas”. Mas já estou a ficar convencida que “isso” não é para ti!


Gustavo: - Tu é que tens a culpa pois nunca me ensinas-te...


Lena: - Pois é, mas eu tenho pouco jeito para “ensinar” ... Para ser professora! Põe mas é os olhos nos vizinhos de 4º andar. Todos os dias discutem agridem-se, mas em três anos de casados já vão no quarto filho! E nós, num ano nem conseguimos (ou melhor) não conseguiste arranjar um! Estou a ver que ainda temos que ir para a “proveta” para eu ser mãe... Ai a minha mãezinha é que tinha razão!


((( Efeito Especial)))

Nesse momento uma lâmpada eléctrica rebenta e apaga-se a luz…


Gustavo: - Olha... Mas que é isto? Olha que a lâmpada apagou-se, deve de estar fundida...


Lena: - Pois, pois a lâmpada está queimada... Olha menino, coisa fofa, muda-a para uma nova. Não me digas que nem sabes mudar e atarraxar uma simples lâmpada?...
Gustavo: - Claro que sei atarraxar uma simples lâmpada. Vou mudá-la...

 

(((Efeito Especial)))

A queda de um corpo

(aiiiiiiiiiiiiiiiii .... aiiiiiiiiiiii que eu morro...)


Narradora: - O marido da Lena tinha apanhado uma descarga eléctrica, o que deixou a mulher surpreendida e incrédula...
 
Lena: - Mas ... Mas tu cais-te? Ai, ai, ai que o meu Gustavo morreu! Ai que grande descarga eléctrica ele sofreu! ... E agora, o que é que eu vou fazer?! ... Ai tão desorientada que eu estou! ... Vou telefonar à minha querida mãezinha...

 

(((Efeito Especial)))

O discar de um telefone


Lena: -... Está? Está... é a mãezinha ? Olhe mamã, o Gustavo morreu!... Oh mamã, muito obrigado, mas neste momento não me dê os parabéns! Tenho sim mãezinha, tenho a certeza que o Gustavo está morto!... Sim mãezinha, bem morto e aqui ao pé de mim! Não, não é preciso dar-lhe um pontapé. Está, está mesmo morto!... Não mãezinha, não há engano possível!... Venha depressa, depressa! ... Olhe, avise toda a gente que o Gustavo morreu ... Sim, sim as autoridades, os bombeiros, o cangalheiro... Avise toda a gente... Sim, sim  tenho a certeza que ele morreu ... Um beijo e venha depressa!...
 
Narradora: - Numa salinha modestamente mobilada, uma jovem mulher, em atitude patética, em pé e encostada a uma mesa, parece meditar... Deitado no chão, o corpo de seu marido, o Gustavo.

 

(((Efeito Especial)))

Toque de campainha da porta

 

Ouve-se um toque de campainha e parece acordar da sua longa meditação. Rapidamente dirige-se para a porta de entrada. Abre-a e...
 

Lena: - És tu mãezinha! Até que enfim que chegaste! Tenho estado prá qui com muito medo...


Sogra: - Minha querida filha, vim o mais depressa possível. Até que estava ansiosa de chegar para assistir a um espectáculo como este. Minha querida filha, onde é que ele está?! ...


Lena: - O Gustavo?... Olhe, está ali morto e todo amarelinho! Coitadinho! ...


Sogra: - Olha, pois está ali! Repara que ele, mesmo depois de morto, mostra bem o que sempre foi em vida: Um perfeito asno, um perfeito idiota!


Lena: - A mãezinha avisou toda a gente que o Gustavo morreu?...
Sogra: - Claro que tive todo o gosto em avisar todo o mundo que o Gustavo morreu! Não deve tardar em começar a aparecer...

 

(((Efeito Especial)))

Toque da campainha da porta


A campainha da porta toca neste momento, e uma voz grita: Polícia!

Sogra: – Já estão a chegar e o primeiro foi a polícia. Vai abrir minha filha que eu fico a guardar este... Este que foi um grande...


Lena: - Pode entrar por aqui, senhor agente...


Polícia: - Ora boa tarde a todos!... Olhem lá, aonde é que está o morto, o tal defunto?


Lena: - Senhor agente, está aqui...


Polícia: - Bem vejo. Ora diga-me como ocorreu  a ocorrência?...


Lena: - O meu marido...


Sogra: - Perdão, ex-marido, queres tu dizer minha filha! Ou, quanto muito, o meu defunto marido!


Lena: - Bem ... Ele estava a atarraxar uma lâmpada, quando caiu fulminado por uma descarga eléctrica. É só isto que...


Polícia: - Quer dizer então que não existem suspeitas de homicídio, nem suspeitas de suicídio, não é verdade?...


Lena: - Pois... Pois não, senhor agente...


Polícia: - Muito bem... Muito bem... O nome do morto, ou defunto, é Gustavo Passos Dias Aguiar, não é verdade?...


Lena: - Está certo, senhor agente...


Polícia: - Olhe lá, minha senhora... Por acaso o seu defunto marido era motorista?...


Lena: - Não, não era. Mas porque pergunta isso?


Polícia: - É que o nome dele, ou melhor, o seu apelido é Passos Dias Aguiar.


Lena: - Mas o Gustavo não era motorista!


Polícia: - Bem... Bem, veremos este assunto mais tarde. Sabe, é que o meu chefe de esquadra (delegacia)  é muito escrupuloso com estes pormenores ...


(((Efeito Especial)))

Ouve-se um toque de campainha...


Sogra: - Minha querida filha vai abri a porta, que eu fico aqui junto ao Senhor Agente.


Lena: - Já vou, mãezinha. Quem será desta vez? ...


Médico: - Boa tarde. Sou o médico legista. Deixe-me entrar e diga-me rapidamente onde está o corpo do homem que morreu?...


Lena: - O corpo do meu defunto marido está aqui, senhor doutor...


Médico: - Muito bem, muito bem... Deixe-me abri a mala para tirar um bisturi. Vou começar a picar aqui no peito... No peito...

 

(((Efeito Especial)))

Grito de homem


Neste momento o “morto” dá um enorme pulo e começa a gritar...


Gustavo: - Aiiiiiii !... Porque me estão a picar?! Mas que brincadeira vem a ser esta?... Deixe-me levantar...


Lena: - Ai, ai o meu coração! Ainda vou desmaiar... Desmaiar...


Gustavo: - Mas... Mas o que se passa aqui em minha casa?! Quem é esta gente? O que é que eu estou a ver? Por favor, digam-me e deixem-me levantar!


Médico: - Chiuuuuuuuuu! Deixe-se estar aí deitadinho e não se mexa! Pergunta onde está?!... Olhe, está morto, percebeu?... Está mesmo morto!  Ou pensa que já está no paraíso, antes de passar pelo inferno?...


Gustavo: - Eu morto?! ... Você deve estar a gozar comigo, ou então é maluco! Olha o trabalhinho deste “mamífero”: Eu morto?! ... Estou vivo e bem vivo!


Médico: - Cale-se lá seu defunto! Olhe que eu nunca me engano. Se está ou não morto, sou eu que decido! Já há muito que sou médico legista, por isso, sei muito bem quando uma pessoa está ou não morta. Portanto...


Gustavo: - Oh homenzinho, mas eu estou vivo. Vivo, entendeu?!...  Já lhe disse para você não ser palerma, pois eu estou vivo e bem vivo!...  Você é cego ou não quer ver?...


Médico: - Não brinque comigo, já lhe disse e não me irrite.  Ora o diabo do defunto... Você está morto, morto e bem morto e, não se discute mais. Ponto final no assunto. Olhe lá, ponha-se a jeito, vire-se um pouco para o outro lado ... assim, assim ... não seja teimoso nem saia dessa posição! ...


Gustavo: - Este “cara” é maluco de alto a baixo! Por favor não me faça cócegas com essa faca, ou bisturi  ou que raio seja. Aiii ... aiii, você está a cortar-me! Já lhe disse que estou vivo...


Médico: - Você está com vontade de brincar, e confesso que já me está a chatear e muito. Daqui a pouco começo a retalhá-lo mesmo antes de você chegar à mesa de anatomia!

 

((( Efeito Especial)))

Toque de campainha da porta


A campainha da porta toca novamente. A Lurdes vai abri-la e aparece a florista...


Lena: - Em que lhe posso ser útil?...


Florista: - É aqui que mora um defunto de nome Gustavo?...


Lena: - Bem, defunto, já não sei, mas  entre, entre para aqui ...


Florista: - Sou a empregada da florista desta rua. Trago aqui estas flores, por sinal bem pesadas que me custaram muito a transportar até aqui. Imagine subir a um terceiro andar com um peso destes. Puufff…
 
Narradora: - nesse momento, o “defunto” olha para a florista, e...
 
Gustavo: - Olhe lá, menina... O Gustavo sou eu e, como vê, não estou nada morto. Até estou bem vivinho. Ouviu bem ? Estou bem vivinho. Leve as flores para outro defunto, porque este está vivinho!...


Florista: - Olha o parvo do homem a dizer que está vivo! Por acaso não quer que eu leve estas flores todas de volta, pois não?... Sempre me acontece cada uma!


Gustavo: - Pois claro que quero que você leve essas flores daqui para fora. Não fui eu que as encomendei, pois não?...


Florista: - Olha para este morto a armar-se em esperto! Olhe que você está morto e bem morto! Eu levar estas flores para a loja?! … Nunca!


Médico: - Oh senhor morto, veja se se cala, pois temos de continuar com a inspecção para apurar a causa provável da morte. Deite-se lá novamente e esteja sossegadinho e quietinho. Esta menina florista tem toda a razão, pois o médico legista sou eu, e por isso, sei e confirmo que você está morto, mesmo morto. Numa palavra: Bem Morto! Não seja mais teimoso, deite-se lá  e fique “quietinho”. Vá... Vá...


Gustavo: - Eu deito-me. Conta a vontade, mas deito-me. Mas por favor, não me venha cortar mais com esse bisturi! Mas que vida (ou morte?)… Francamente, já nem sei se estou vivo ou se estou morto!


Sogra: - O meu “querido e defunto genro”, nem mesmo depois de morto, consegue ter um pouco de dignidade! Vá lá, deite-se como o senhor doutor quer. E não refile com a sua ex-sogra, senão...


Polícia: - Ouça lá cavalheiro defunto, você está a gozar cá com a autoridade? Olhe que mesmo depois de morto, você vai preso. Deite-se e deixe-se estar quieto!


Gustavo: - Mas você não vê que eu estou vivo e bem vivo?! Olhe que ainda não me sinto “fantasma”!...


Polícia: - Cale-se e deite-se. Olhe que eu já lhe ordenei que se deitasse! Com diz aqui o doutor, você está morto e bem morto! Olha para este, que queria que eu fosse para a esquadra (delegacia) da polícia e dizer que tinha vindo tomar conta de uma ocorrência e que, afinal o morto já não era morto! Você está além de defunto também doido! Devia ser o bom e o bonito com o chefe; ninguém o poderia aturar...


Gustavo: - Mas eu...


Polícia: - Fique você sabendo que eu não quero mais “mas”, nem meio “mas”! E vamos lá acabar com a conversa, pois o papagaio já vai muito alto. Imagine-se que está morto, morto e bem morto. E não se fala mais neste assunto! ...


Gustavo: - Desculpe os contrariar, mas não estou nadinha de acordo com vocês. Estou vivo...


Polícia: - Você não tem voto na matéria. Já lhe disse que não se fala mais nisto. E não volte a ser teimoso, não me obrigue a actuar e levá-lo para a prisão. Deite-se, deite-se já e não proteste mais.


(((Efeito Especial)))

Toque de Campainha

A campainha da porta volta a tocar. É a vez de o cangalheiro entrar em cena...


Lena: - É o senhor cangalheiro da agência funerária! Ai que horror ter de tirar medidas ao que querido defunto marido...


Funerária: - Minha senhora tenha calma e um pouco de coragem. Eu tiro rapidamente as medidas. É só o comprimento e a largura das costas. Olhe que até tenho uma urna em armazém muito jeitosa para este caso, só precisa de uma simples pintura... É um pouco curta, mas podemos encolher um pouco as pernas do defunto... E vai servir muito bem, muito bem mesmo! Olhe que sou cangalheiro há mais de quarenta anos, e nunca tive uma reclamação sequer dos principais interessados, ou seja, dos mortos! Esta urna vai ficar mesmo a calhar e o morto bem confortável…


Gustavo: - Morto, não estou, só se vocês estiverem a sonhar. Para mim, isto é um verdadeiro pesadelo! Imaginem só, uma urna para mim, que estou vivinho?!


Sogra: - Pois claro que é para você, meu “querido” genro! ... Para quem havia de ser, se você é que é o morto? Só se prefere ir embrulhado num simples lençol. Até para a família o funeral ficaria mais barato.


Gustavo: - Espere, espere aí Sr. Cangalheiro. Eu dentro de uma urna e ficar com as pernas encolhidas?...


Funerária: - O meu amigo cale-se, pois eu sei muito bem o que faço. Para mais, como já lhe disse, até hoje nunca tive reclamações de defuntos como você!


(((Efeito Especial)))

Toque de campainha da porta

Novamente a campainha da porta toca e aparece a Dora a filha da porteira...


Sogra: - Desta vez sou eu que vou abrir a porta... Mas quem é você?...


Dora: - Sou a Dora, a filha da porteira deste prédio. Desculpem vir incomodá-los, mas queria avisá-los que o velhote do rés-do-chão... Aquele que vivia sozinho sabem?


Lena: - Sim, sim. Eu sei bem quem é. O que aconteceu ao senhor?...


Dora: - Olhe, morreu!


Sogra: - E como é que a menina sabe que o velhote morreu?...

 

Dora: - Como ele não aparecia já a alguns dias, eu e a minha mãe abrimos a porta da casa e encontramos o senhor já morto. E já deita um “cheirinho”...


Polícia: - Bem, neste caso, acho melhor ir-mos todos lá a baixo e tomar conta da ocorrência. Quer dizer que, hoje no mesmo prédio, dois mortos...


Médico: - O senhor agente diz e muito bem: Dois mortos no mesmo dia e no mesmo prédio, não acontece todos os dias! Será assim quase como umas mortes em série. Isto promete isto promete...


Funerária: - E eu, vou também, pois assim poderei vender mais uma urna...
 
Narradora: - E todos saíram da casa, ficando só a filha da porteira junto ao “defunto” Gustavo...
 
Gustavo: Ficaste aí garota?...


Dora: - Pois fiquei... O senhor Gustavo sempre é um morto mais bonito que o velhote do rés-do-chão.


Gustavo: - Mas como tu vês, eu não estou nada morto! ... Sofri um acidente quando estava a mudar uma lâmpada eléctrica. Mas já passou o mau tempo e, estou vivo e bem vivo!


Dora: - Confesso que não estou a compreender mesmo nada. Toda a gente afirma que o senhor Gustavo está morto...


Gustavo: - Querem é fazerem crer que eu estou morto. Mas não vão conseguir os seus intentos, não... Estou vivo e bem vivo. E claro que o vou provar!


Natália: - O senhor é muito valente!... Deixe-me dar-lhe dois beijinhos?!...


Gustavo: - Quantos quiser, pequena. Abraça-me... Aperta-me... Mais... Mais... Assim...
 
Narradora: A mulher do Gustavo, a Lena regressa a casa e vê esta cena: O “defunto” marido abraçado a uma bela jovem...
 
Lena: - Mas... mas que é isto que eu estou a ver ?!... Vou lá abaixo ver o velhote que morreu e, quando regresso, apanho uma desavergonhada abraçada e a beijar o meu marido! Fora, fora daqui já!...


Gustavo: - Cala-te mulher! Pois, quem manda aqui, sou EU!  Ouviste bem ou queres que eu faça um desenho?... Anda cá pequena, vamos continuar...


Lena: - Mas o que estás para aí a dizer “defunto” de um raio?!...
 
Narradora: - Ao ouvir isto, o Gustavo chega junto à mulher e dá-lhe um empurrão...
 
Lena: -  Tu atreveste a empurrar-me? Olha que eu dou-te...
 
Narradora: - O Gustavo dá-lhe outro empurrão...
 
Lena: - Eu nem quero acreditar. A empurrares-me por causa de uma desavergonhada...


Gustavo: - Cala-te mulher! Que ainda levas mais! Nunca te esqueças que me fizeste passar por uma situação ridícula. Toma...
 
Narradora: - Ainda mais um empurrão que o Gustavo dá na mulher...
 
Lena: - Não acredito! O meu gentil marido a empurrar-me!


Gustavo: - Vê lá se te calas, senão ainda levas mais... Olha lá garota, estou muito agradecido pelo apoio moral que me deste. Não é para pagar a tua gentileza, mas toma esta nota. Não, não me agradeças. Vou acompanhar-te até à porta, e quem sabe ...


Dora: - Muito obrigado, senhor Gustavo! Vou-me já embora, mas antes lhe peço que não empurre mais a senhora, embora ela tenha procedido muito mal. Boa Noite!...


Lena: - Continuo a não compreender e cada vez estou mais surpreendida. Tu deste aquela nota de cinquenta euros à rapariga, e, tiraste-a do teu ordenado que ainda não me tinhas entregue ?! ...


Gustavo: - Pois, pois isso já pertence ao passado. Isto agora vai mudar e muito de figura. Olha lá, passa-me aquela garrafa de vinho. Depressa, não ouviste?... Não esteja para aí de boca aberta e com esse ar espantado...


Lena: - Tu, tu a beberes vinho?!... E pela garrafa?... E vais beber toda?... Ai como está tão diferente!


(((Efeito Especial)))

Toque de campainha da porta

A campainha volta a tocar e aparece a “sogrinha”…

 

Gustavo: – Eu é que vou abrir… Olha, olha quem está aqui!... Olhe lá, minha querida “sogrinha” o que vem cá fazer?... Aceite já o meu conselho e vá para sua casa muito e saia da minha vista  rapidamente. A minha casa não é nenhum laboratório de ensaios... Bem, só se você quer ser transformada numa retorta...

 

Sogra: - Mas olhe lá, “querido” genro, você está morto, morto... Ou estava morto?! ...


Lena: - Mãezinha, mãezinha, tome atenção!... O Fernando empurrou-me, gastou dinheiro do ordenado antes do me entregar, e imagine: bebeu uma garrafa de vinho! Ele está muito, muito diferente, PARA  MELHOR!!!


Sogra: - Ah sim... Minha querida filhinha?... Ainda bem!
 
Narradora: - E a sogra do Gustavo, juntando as mãos e olhando para o céu, como que interrogando os “deuses” murmurou:
 
Sogra: SERÁ  QUE  DESTA  VEZ  É  QUE  VOU  SER  AVÓ ? ...
 

FIM


Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande - Portugal

 

 

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