Começo falando sobre o que mais me chamou
a atenção: a provocação às brigas de Lena
com Gustavo. Parece-me que, na vida real, há
mulheres que não são muito chegadas a homens
bonzinhos, acho até que elas gostam de
serem um pouquinho judiadas. Não obstante,
lendo isso, fez-me lembrar da vida conjugal
de um casal amigo, que desde cedo, desde que
se casaram há 40 anos, vivem a brigar. Eu
nunca havia entendido muito bem o porquê
disso, mas, certamente esta “Lena” consegue,
do meu amigo, despertá-lo para briga, e
acabam de fato brigando. O curioso é que
sempre brigam e sempre estão de bem e
felizes.
Na parte artística de sua obra, na trama, as
partes humorísticas do “vivo ou morto”, não
podiam ser melhores. Achei artisticamente
muito bem tramada e cheia de graças.
O espaço/tempo, a casa de Lena, que ocorreu
todo o desenrolar do drama “vivo ou morto”
foi um lugar ideal para a fácil compreensão
do leitor. Nenhuma dúvida pairou no ar, isso
porque o espaço foi tão bem escolhido que
nenhum outro lugar poderia ser melhor.
Agora só me resta cumprimentá-lo e dizer-lhe
que adorei ter essa oportunidade de ler
amiúde o seu texto.
Saudações Literárias,
Ari Santos de Campos
“Vivo ou
Morto?” – de Carlos Leite Ribeiro
Vamos simular a gravação
de um Teatro Radiofónico (ou Rádio Teatro)
muito em voga nos anos 50 /70. Em Portugal
sempre houve grandes interpretes deste
género de teatro, mais difícil que muita
gente pensa.
Estamos num estúdio de
gravação, já com o ensaio realizado. Vamos
ver o que diz o realizador minutos antes de
começar a gravação:
“Meus amigos, como já
sabem mas nunca será demais repetir, “puxem”
bem a voz para os ouvidos para poderem
respirar melhor e sem ruído; prolonguem um
pouco a última palavra para deixar a “deixa”
ao companheiro; cuidado com o barulho das
folhas de papel; sobretudo, não olhem uns
para os outros para evitar o riso, que
obriga a repetições.
A sonoplastia (*), além
dos “efeitos especiais” regulou o volume dos
microfones para as vossas vozes.
(*)A sonoplastia é
responsável pela execução de efeitos
especiais e fundos sonoros pedidos pela
produção ou direção dos programas. O
sonoplasta precisa ter sensibilidade,
acuidade auditiva e criatividade. Na
sonoplastia a música e os elementos sonoros
são fundamentais na construção da imagem que
se forma na mente do ouvinte.
O microfone Nº01 é para a “Lena”; o 04
para o Gustavo; o 03 para a sogrinha e fale
pausadamente em tom irônico; o 02 para o
polícia, médico e para o cangalheiro; o 05
para a florista e para a Dora; o 06 para a
Narradora.
Se tudo correr bem e como sou muito
generoso, fazemos dois intervalos para tomar
café e retemperar os nervos.
E vamos ao trabalho, melhor, à gravação
de:
“Morto ou Vivo? – de
Carlos Leite Ribeiro
Narradora: - Há meses que o Gustavo e
Lena trocavam e-mails e, por vezes, falavam
pelo Skype. Moravam em cidades diferentes e
não se conheciam. Para ele, Helena era um
bem que lhe tinha aparecido depois de ter
rompido o namoro de anos com sua namorada;
para ela, era um modo para tentar esquecer o
seu antigo namorado Bené, que sempre a
maltratou. O namoro pela Internet tornou-se
com o tempo algo intenso e para eles,
parecia a coisa mais bela que lhes tinha
acontecido. Ela considerava Gustavo o melhor
homem que já mais contactara e tinha entrado
profundamente em sua vida; para ele, Lena,
seria a mulher mais perfeita que haveria
nesta terra. Ambos consideravam o seu
contacto como uma dádiva do destino.
Ao fim de alguns meses de contacto via
Internet, resolveram um dia encontrarem-se
pessoalmente num restaurante chinês, de uma
cidade vizinha. A conversa prolongou-se e a
certa altura, Gustavo olhou instintivamente
para as belas pernas da empregada que estava
a servir a sua mesa. Ela sentiu uns
profundos ciúmes e levantou-se da mesa e
saindo do restaurante. Depois de pagar o
jantar, Gustavo foi ter com a Lena que já se
encontrava junto ao carro. Depois de uma
breve troca de palavras e com o incidente
com as pernas da criada sanado, entraram no
carro e ele propôs-lhe casamento.
Passaram meses nestes encontros quase
furtivos e um belo dia, Lena convidou
Gustavo ir a casa de sua mãe, para
apresentá-lo. Embora contrariado, acedeu com
receio de perder aquele amor.
Quando Lena apresentou o Gustavo a D.
Renata, esta o olhou dos pés à cabeça,
engoliu em seco antes de se pronunciar.
- Minha querida filha estás preste a
correr enorme risco e a perderes a tua
preciosa liberdade que tanto presas. Mas a
vida é tua e eu não te quero (nem posso)
contrariar-te.
Um ano mais tarde…
Ao cair de uma tarde de um dia qualquer,
o pacato cidadão Gustavo chegava a sua casa,
depois de um estafante dia de trabalho,
levando de braçado um enorme ramos de
flores. Mete a chave na respectiva
fechadura, dá a volta à chave, e entra em
casa, chamando logo pela sua querida
mulher...
Gustavo: -Lena! Leninhaaa! Onde estás tu,
meu amor? Nem te via e já estava a ficar
preocupado contigo. Olha o que o teu
maridinho te trouxe hoje?! Vê, vê... Aqui
está um lindo bouquet de lindas flores para
a minha querida bonequinha!
Lena: - Olá. Olha lá, Gustavo, para que é
essa porcaria que trazes debaixo do braço,
não me dizes? Tira-me essas flores já, mas
já daqui da minha vista! Que porcaria!
Puufff, flores... Ainda se fosse outra
coisa, digamos mais “palpável”...
Gustavo: - Mas... Leninha, meu grande amor,
são flores, muito bonitinhas, só para ti,
que és o meu grande e meu único amor!
Lena: - Aiii, mas que raiva! Olha lá,
Gustavo, para quê esta gentileza toda?... Ou
será para eu esquecer o que não tenho “há
séculos?... Isto traz água no bico. Já te
disse, tira-me essas “ervas” daqui!
Gustavo: - Estás muito enervadinha, meu
amor! Tu sabes muito bem que eu te adoro,
não queres é dares o braço a torcer...
Lena: - Eu sei?... eu sei, mas eu sei o
quê?! Melhor, só sei é que não tenho
“aquilo” que mais desejo há muito tempo.
Daqui a pouco até me esqueço como se faz
“aquilo” ! Tu, não deves de estar bom da
cabeça...
Gustavo: - Então minha querida, meu grande
amor, não te lembras que fazemos hoje...
Puxa pela tua linda cabecinha ... Não te
lembras? Fazemos hoje, um aninho de casados,
de casadinhos!
Lena: - Fazemos um ano de casados? (ui, que
desgraça...), e daí, onde estão meus
direitos de mulher?...
Gustavo: - E daí?... Perguntas tu, minha
querida Leninha?!...
Lena: - Com que então fazemos hoje um longo
ano de casamento, direi a aturar-te! E tu
ainda não tens vergonha de te lembrares
desta tão triste data?... Ai, ai, a minha
mãezinha é que tinha razão : A sua única e
querida filhinha a casar com um “estojo”
destes, que nem sabe ... Até tenho vergonha
de dizer!
Gustavo: - Mas, minha queridinha, tu está a
elaborar num enorme erro, pois eu tenho sido
um marido exemplar. E isso que estás para aí
a dizer, é simplesmente uma atitude minha
para... Não te incomodar! Mas tenho sido
exemplar na minha conduta!
Lena: - Tu exemplar?! Com esse teu problema
de não me “incomodares”, tens sido
exemplar?! Tu não prestas é para nada, para
nadinha! Nem só da comida se alimenta uma
mulher!
Gustavo: - Continuas a ser injusta para mim,
que sempre tenho procurado ser exemplar para
contigo. Sou incapaz de olhar para outra
qualquer mulher, pois só me interessa a
minha adorada Leninha. Tenho sido
bonzinho...
Lena: - Bonzinhoooo?... Ai muito bonzinho…
Ai credo não me toque que me podes
desafinar, ai credo! Olha lá que vida é que
me tens proporcionado? Só me pagares a
comida e o vestir? Isso, só, não chega!
Escusas de estar a fazer para aí essa cara,
que até me pareces um palerminha! Mas que
vida é que me tens proporcionado? Ai, a
minha mãezinha é que tinha razão!
Gustavo: - Leninha, tu nunca estás contente
com o que tens, melhor, nem sabes o bem que
te rodeia! Eu... Eu tenho sido tão bonzinho
para ti, ora vejamos: Lavo a roupa, aspiro a
casa e, às vezes ainda te ajudo a estender a
roupa e a fazer o comer. Que mais queres tu,
meu amor?...
Lena: - Deixa-te dessas parvoíces! Olha lá,
tu alguma vez tiveste alguma reunião com
amigos? Ou fizeste serão até tarde... Para
chegares a casa já de madrugada, bêbado e
com vontade de implicares comigo?...
Gustavo: - Eu...?! Bem sabes que nunca, mas
nunca fiz isso! Eu sempre cheguei a casa
muito cedo, para poder estar o mais tempo
possível junto à minha querida Leninha!
Nunca fui um vadio nem um boémio! Tu sabes
bem que sempre foi assim. E nunca gostei de
amachucar ou incomodar o meu grande amor,
nem sequer na cama! Tenho sido exemplar!
Lena: - Pois, pois (até me dá vontade de rir
se a situação não fosse tão grave) ... Nunca
chegaste a casa com uns valentes “copos”. O
Gustavo sempre chegou a casa são e
santificado como um menino de porcelana ...
Assim, como é que eu posso discutir contigo,
ficar muito zangada, furiosa mesmo e, depois
fazer as pazes, com muitos abraços e
beijinhos; e por fim acabar a zanga na cama
(só a pensar nisto sinto-me excitada!). Mas
não, tu não dás hipóteses: sempre a chegar a
casa cedo e, depois de fazeres as tuas
“obrigações domésticas”, cama com ele,
sempre virado para o lado contrário ao meu,
e toca a dormir! Às vezes até sinto vontade
de te dar dois murros, para ver se
reages!... Tu nem sequer vais ao futebol com
os teus amigos!... Ai a minha mãezinha é que
tinha razão – tu não prestas para nadinha!
Gustavo: - Mas o que tu queres? ... Eu sou
mesmo assim, amorzinho! Quando chego a casa,
gosto de ajudar a minha querida a fazer
“coisas domésticas” e, depois como estou
muito cansado, vou logo direitinho para a
cama fazer soninho, sem incomodar a minha
querida mulherzinha, a que adoro e seria
incapaz de incomodá-la...
Lena: - Oh filho, tem juízo e deixa-te
dessas tretas! Eu gosto tanto (ou gostava!)
de ser “incomodada”... Tu nem uma vez só
chegaste a casa com o dinheiro do ordenado a
menos!
Gustavo: - Eu?! Fazer isso? Nunca! Tu bem
sabes que te entrego o dinheiro todo, tudo o
que ganho! A minha querida Leninha é que
governa tudo, tudo, não é?...
Lena: - É siimmmmmm … Eu é que governo tudo,
ou quase tudo (pois “aquilo” é que não
governo não ...). Só gostava de saber como
poderei discutir contigo, excitar-te, por
acaso não me dizes? Eu, não casei com um
homem, casei com uma irritante “perfeição”,
digna de museu. Olha que eu não gosto “só”
de ser “olhada” como se fosse uma boneca de
porcelana! Ai a minha mãezinha é que tinha
razão! ...
Gustavo: - Mas eu, querida...
Lena: - Mas o quê “querida”?! ... Olha lá,
alguma vez me deste alguma palmadinha aqui
no traseiro, ou apalpaste para sentires o
meu coração a bater no peito?
Gustavo: - Euuu?... Nunca, mas nunca te dei
palmadinha no teu traseiro, nem mexi no teu
peito com receio de te machucar... Nem na...
Tu sempre disseste que quando a tua mãezinha
te batia, ficavas muito chocada com ela. Por
isso não te dou palmadinhas!
Lena: - Não confundas o que não tem
comparação alguma! Refiro-me aquelas
palmadinhas “malandrecas e eróticas”. Mas já
estou a ficar convencida que “isso” não é
para ti!
Gustavo: - Tu é que tens a culpa pois nunca
me ensinas-te...
Lena: - Pois é, mas eu tenho pouco jeito
para “ensinar” ... Para ser professora! Põe
mas é os olhos nos vizinhos de 4º andar.
Todos os dias discutem agridem-se, mas em
três anos de casados já vão no quarto filho!
E nós, num ano nem conseguimos (ou melhor)
não conseguiste arranjar um! Estou a ver que
ainda temos que ir para a “proveta” para eu
ser mãe... Ai a minha mãezinha é que tinha
razão!
((( Efeito Especial)))
Nesse momento uma lâmpada eléctrica
rebenta e apaga-se a luz…
Gustavo: - Olha... Mas que é isto? Olha que
a lâmpada apagou-se, deve de estar
fundida...
Lena: - Pois, pois a lâmpada está
queimada... Olha menino, coisa fofa, muda-a
para uma nova. Não me digas que nem sabes
mudar e atarraxar uma simples lâmpada?...
Gustavo: - Claro que sei atarraxar uma
simples lâmpada. Vou mudá-la...
(((Efeito Especial)))
A queda de um corpo
(aiiiiiiiiiiiiiiiii .... aiiiiiiiiiiii
que eu morro...)
Narradora: - O marido da Lena tinha apanhado
uma descarga eléctrica, o que deixou a
mulher surpreendida e incrédula...
Lena: - Mas ... Mas tu cais-te? Ai, ai, ai
que o meu Gustavo morreu! Ai que grande
descarga eléctrica ele sofreu! ... E agora,
o que é que eu vou fazer?! ... Ai tão
desorientada que eu estou! ... Vou telefonar
à minha querida mãezinha...
(((Efeito Especial)))
O discar de um telefone
Lena: -... Está? Está... é a mãezinha ? Olhe
mamã, o Gustavo morreu!... Oh mamã, muito
obrigado, mas neste momento não me dê os
parabéns! Tenho sim mãezinha, tenho a
certeza que o Gustavo está morto!... Sim
mãezinha, bem morto e aqui ao pé de mim!
Não, não é preciso dar-lhe um pontapé. Está,
está mesmo morto!... Não mãezinha, não há
engano possível!... Venha depressa,
depressa! ... Olhe, avise toda a gente que o
Gustavo morreu ... Sim, sim as autoridades,
os bombeiros, o cangalheiro... Avise toda a
gente... Sim, sim tenho a certeza que ele
morreu ... Um beijo e venha depressa!...
Narradora: - Numa salinha modestamente
mobilada, uma jovem mulher, em atitude
patética, em pé e encostada a uma mesa,
parece meditar... Deitado no chão, o corpo
de seu marido, o Gustavo.
(((Efeito Especial)))
Toque de campainha da porta
Ouve-se um toque de campainha e parece
acordar da sua longa meditação. Rapidamente
dirige-se para a porta de entrada. Abre-a e...
Lena: - És tu mãezinha! Até que enfim que
chegaste! Tenho estado prá qui com muito
medo...
Sogra: - Minha querida filha, vim o mais
depressa possível. Até que estava ansiosa de
chegar para assistir a um espectáculo como
este. Minha querida filha, onde é que ele
está?! ...
Lena: - O Gustavo?... Olhe, está ali morto e
todo amarelinho! Coitadinho! ...
Sogra: - Olha, pois está ali! Repara que
ele, mesmo depois de morto, mostra bem o que
sempre foi em vida: Um perfeito asno, um
perfeito idiota!
Lena: - A mãezinha avisou toda a gente que o
Gustavo morreu?...
Sogra: - Claro que tive todo o gosto em
avisar todo o mundo que o Gustavo morreu!
Não deve tardar em começar a aparecer...
(((Efeito Especial)))
Toque da campainha da porta
A campainha da porta toca neste momento, e
uma voz grita: Polícia!
Sogra: – Já estão a chegar e o primeiro
foi a polícia. Vai abrir minha filha que eu
fico a guardar este... Este que foi um
grande...
Lena: - Pode entrar por aqui, senhor
agente...
Polícia: - Ora boa tarde a todos!... Olhem
lá, aonde é que está o morto, o tal defunto?
Lena: - Senhor agente, está aqui...
Polícia: - Bem vejo. Ora diga-me como
ocorreu a ocorrência?...
Lena: - O meu marido...
Sogra: - Perdão, ex-marido, queres tu dizer
minha filha! Ou, quanto muito, o meu defunto
marido!
Lena: - Bem ... Ele estava a atarraxar uma
lâmpada, quando caiu fulminado por uma
descarga eléctrica. É só isto que...
Polícia: - Quer dizer então que não existem
suspeitas de homicídio, nem suspeitas de
suicídio, não é verdade?...
Lena: - Pois... Pois não, senhor agente...
Polícia: - Muito bem... Muito bem... O nome
do morto, ou defunto, é Gustavo Passos Dias
Aguiar, não é verdade?...
Lena: - Está certo, senhor agente...
Polícia: - Olhe lá, minha senhora... Por
acaso o seu defunto marido era motorista?...
Lena: - Não, não era. Mas porque pergunta
isso?
Polícia: - É que o nome dele, ou melhor, o
seu apelido é Passos Dias Aguiar.
Lena: - Mas o Gustavo não era motorista!
Polícia: - Bem... Bem, veremos este assunto
mais tarde. Sabe, é que o meu chefe de
esquadra (delegacia) é muito escrupuloso
com estes pormenores ...
(((Efeito Especial)))
Ouve-se um toque de campainha...
Sogra: - Minha querida filha vai abri a
porta, que eu fico aqui junto ao Senhor
Agente.
Lena: - Já vou, mãezinha. Quem será desta
vez? ...
Médico: - Boa tarde. Sou o médico legista.
Deixe-me entrar e diga-me rapidamente onde
está o corpo do homem que morreu?...
Lena: - O corpo do meu defunto marido está
aqui, senhor doutor...
Médico: - Muito bem, muito bem... Deixe-me
abri a mala para tirar um bisturi. Vou
começar a picar aqui no peito... No peito...
(((Efeito Especial)))
Grito de homem
Neste momento o “morto” dá um enorme pulo e
começa a gritar...
Gustavo: - Aiiiiiii !... Porque me estão a
picar?! Mas que brincadeira vem a ser
esta?... Deixe-me levantar...
Lena: - Ai, ai o meu coração! Ainda vou
desmaiar... Desmaiar...
Gustavo: - Mas... Mas o que se passa aqui em
minha casa?! Quem é esta gente? O que é que
eu estou a ver? Por favor, digam-me e
deixem-me levantar!
Médico: - Chiuuuuuuuuu! Deixe-se estar aí
deitadinho e não se mexa! Pergunta onde
está?!... Olhe, está morto, percebeu?...
Está mesmo morto! Ou pensa que já está no
paraíso, antes de passar pelo inferno?...
Gustavo: - Eu morto?! ... Você deve estar a
gozar comigo, ou então é maluco! Olha o
trabalhinho deste “mamífero”: Eu morto?! ...
Estou vivo e bem vivo!
Médico: - Cale-se lá seu defunto! Olhe que
eu nunca me engano. Se está ou não morto,
sou eu que decido! Já há muito que sou
médico legista, por isso, sei muito bem
quando uma pessoa está ou não morta.
Portanto...
Gustavo: - Oh homenzinho, mas eu estou vivo.
Vivo, entendeu?!... Já lhe disse para você
não ser palerma, pois eu estou vivo e bem
vivo!... Você é cego ou não quer ver?...
Médico: - Não brinque comigo, já lhe disse e
não me irrite. Ora o diabo do defunto...
Você está morto, morto e bem morto e, não se
discute mais. Ponto final no assunto. Olhe
lá, ponha-se a jeito, vire-se um pouco para
o outro lado ... assim, assim ... não seja
teimoso nem saia dessa posição! ...
Gustavo: - Este “cara” é maluco de alto a
baixo! Por favor não me faça cócegas com
essa faca, ou bisturi ou que raio seja.
Aiii ... aiii, você está a cortar-me! Já lhe
disse que estou vivo...
Médico: - Você está com vontade de brincar,
e confesso que já me está a chatear e muito.
Daqui a pouco começo a retalhá-lo mesmo
antes de você chegar à mesa de anatomia!
((( Efeito Especial)))
Toque de campainha da porta
A campainha da porta toca novamente. A
Lurdes vai abri-la e aparece a florista...
Lena: - Em que lhe posso ser útil?...
Florista: - É aqui que mora um defunto de
nome Gustavo?...
Lena: - Bem, defunto, já não sei, mas
entre, entre para aqui ...
Florista: - Sou a empregada da florista
desta rua. Trago aqui estas flores, por
sinal bem pesadas que me custaram muito a
transportar até aqui. Imagine subir a um
terceiro andar com um peso destes. Puufff…
Narradora: - nesse momento, o “defunto” olha
para a florista, e...
Gustavo: - Olhe lá, menina... O Gustavo sou
eu e, como vê, não estou nada morto. Até
estou bem vivinho. Ouviu bem ? Estou bem
vivinho. Leve as flores para outro defunto,
porque este está vivinho!...
Florista: - Olha o parvo do homem a dizer
que está vivo! Por acaso não quer que eu
leve estas flores todas de volta, pois
não?... Sempre me acontece cada uma!
Gustavo: - Pois claro que quero que você
leve essas flores daqui para fora. Não fui
eu que as encomendei, pois não?...
Florista: - Olha para este morto a armar-se
em esperto! Olhe que você está morto e bem
morto! Eu levar estas flores para a loja?! …
Nunca!
Médico: - Oh senhor morto, veja se se cala,
pois temos de continuar com a inspecção para
apurar a causa provável da morte. Deite-se
lá novamente e esteja sossegadinho e
quietinho. Esta menina florista tem toda a
razão, pois o médico legista sou eu, e por
isso, sei e confirmo que você está morto,
mesmo morto. Numa palavra: Bem Morto! Não
seja mais teimoso, deite-se lá e fique
“quietinho”. Vá... Vá...
Gustavo: - Eu deito-me. Conta a vontade, mas
deito-me. Mas por favor, não me venha cortar
mais com esse bisturi! Mas que vida (ou
morte?)… Francamente, já nem sei se estou
vivo ou se estou morto!
Sogra: - O meu “querido e defunto genro”,
nem mesmo depois de morto, consegue ter um
pouco de dignidade! Vá lá, deite-se como o
senhor doutor quer. E não refile com a sua
ex-sogra, senão...
Polícia: - Ouça lá cavalheiro defunto, você
está a gozar cá com a autoridade? Olhe que
mesmo depois de morto, você vai preso.
Deite-se e deixe-se estar quieto!
Gustavo: - Mas você não vê que eu estou vivo
e bem vivo?! Olhe que ainda não me sinto
“fantasma”!...
Polícia: - Cale-se e deite-se. Olhe que eu
já lhe ordenei que se deitasse! Com diz aqui
o doutor, você está morto e bem morto! Olha
para este, que queria que eu fosse para a
esquadra (delegacia) da polícia e dizer que
tinha vindo tomar conta de uma ocorrência e
que, afinal o morto já não era morto! Você
está além de defunto também doido! Devia ser
o bom e o bonito com o chefe; ninguém o
poderia aturar...
Gustavo: - Mas eu...
Polícia: - Fique você sabendo que eu não
quero mais “mas”, nem meio “mas”! E vamos lá
acabar com a conversa, pois o papagaio já
vai muito alto. Imagine-se que está morto,
morto e bem morto. E não se fala mais neste
assunto! ...
Gustavo: - Desculpe os contrariar, mas não
estou nadinha de acordo com vocês. Estou
vivo...
Polícia: - Você não tem voto na matéria. Já
lhe disse que não se fala mais nisto. E não
volte a ser teimoso, não me obrigue a actuar
e levá-lo para a prisão. Deite-se, deite-se
já e não proteste mais.
(((Efeito Especial)))
Toque de Campainha
A campainha da porta volta a tocar. É a
vez de o cangalheiro entrar em cena...
Lena: - É o senhor cangalheiro da agência
funerária! Ai que horror ter de tirar
medidas ao que querido defunto marido...
Funerária: - Minha senhora tenha calma e um
pouco de coragem. Eu tiro rapidamente as
medidas. É só o comprimento e a largura das
costas. Olhe que até tenho uma urna em
armazém muito jeitosa para este caso, só
precisa de uma simples pintura... É um pouco
curta, mas podemos encolher um pouco as
pernas do defunto... E vai servir muito bem,
muito bem mesmo! Olhe que sou cangalheiro há
mais de quarenta anos, e nunca tive uma
reclamação sequer dos principais
interessados, ou seja, dos mortos! Esta urna
vai ficar mesmo a calhar e o morto bem
confortável…
Gustavo: - Morto, não estou, só se vocês
estiverem a sonhar. Para mim, isto é um
verdadeiro pesadelo! Imaginem só, uma urna
para mim, que estou vivinho?!
Sogra: - Pois claro que é para você, meu
“querido” genro! ... Para quem havia de ser,
se você é que é o morto? Só se prefere ir
embrulhado num simples lençol. Até para a
família o funeral ficaria mais barato.
Gustavo: - Espere, espere aí Sr.
Cangalheiro. Eu dentro de uma urna e ficar
com as pernas encolhidas?...
Funerária: - O meu amigo cale-se, pois eu
sei muito bem o que faço. Para mais, como já
lhe disse, até hoje nunca tive reclamações
de defuntos como você!
(((Efeito Especial)))
Toque de campainha da porta
Novamente a campainha da porta toca e
aparece a Dora a filha da porteira...
Sogra: - Desta vez sou eu que vou abrir a
porta... Mas quem é você?...
Dora: - Sou a Dora, a filha da porteira
deste prédio. Desculpem vir incomodá-los,
mas queria avisá-los que o velhote do
rés-do-chão... Aquele que vivia sozinho
sabem?
Lena: - Sim, sim. Eu sei bem quem é. O que
aconteceu ao senhor?...
Dora: - Olhe, morreu!
Sogra: - E como é que a menina sabe que o
velhote morreu?...
Dora: - Como ele não aparecia já a alguns
dias, eu e a minha mãe abrimos a porta da
casa e encontramos o senhor já morto. E já
deita um “cheirinho”...
Polícia: - Bem, neste caso, acho melhor
ir-mos todos lá a baixo e tomar conta da
ocorrência. Quer dizer que, hoje no mesmo
prédio, dois mortos...
Médico: - O senhor agente diz e muito bem:
Dois mortos no mesmo dia e no mesmo prédio,
não acontece todos os dias! Será assim quase
como umas mortes em série. Isto promete isto
promete...
Funerária: - E eu, vou também, pois assim
poderei vender mais uma urna...
Narradora: - E todos saíram da casa, ficando
só a filha da porteira junto ao “defunto”
Gustavo...
Gustavo: Ficaste aí garota?...
Dora: - Pois fiquei... O senhor Gustavo
sempre é um morto mais bonito que o velhote
do rés-do-chão.
Gustavo: - Mas como tu vês, eu não estou
nada morto! ... Sofri um acidente quando
estava a mudar uma lâmpada eléctrica. Mas já
passou o mau tempo e, estou vivo e bem vivo!
Dora: - Confesso que não estou a compreender
mesmo nada. Toda a gente afirma que o senhor
Gustavo está morto...
Gustavo: - Querem é fazerem crer que eu
estou morto. Mas não vão conseguir os seus
intentos, não... Estou vivo e bem vivo. E
claro que o vou provar!
Natália: - O senhor é muito valente!...
Deixe-me dar-lhe dois beijinhos?!...
Gustavo: - Quantos quiser, pequena.
Abraça-me... Aperta-me... Mais... Mais...
Assim...
Narradora: A mulher do Gustavo, a Lena
regressa a casa e vê esta cena: O “defunto”
marido abraçado a uma bela jovem...
Lena: - Mas... mas que é isto que eu estou a
ver ?!... Vou lá abaixo ver o velhote que
morreu e, quando regresso, apanho uma
desavergonhada abraçada e a beijar o meu
marido! Fora, fora daqui já!...
Gustavo: - Cala-te mulher! Pois, quem manda
aqui, sou EU! Ouviste bem ou queres que eu
faça um desenho?... Anda cá pequena, vamos
continuar...
Lena: - Mas o que estás para aí a dizer
“defunto” de um raio?!...
Narradora: - Ao ouvir isto, o Gustavo chega
junto à mulher e dá-lhe um empurrão...
Lena: - Tu atreveste a empurrar-me? Olha
que eu dou-te...
Narradora: - O Gustavo dá-lhe outro
empurrão...
Lena: - Eu nem quero acreditar. A
empurrares-me por causa de uma
desavergonhada...
Gustavo: - Cala-te mulher! Que ainda levas
mais! Nunca te esqueças que me fizeste
passar por uma situação ridícula. Toma...
Narradora: - Ainda mais um empurrão que o
Gustavo dá na mulher...
Lena: - Não acredito! O meu gentil marido a
empurrar-me!
Gustavo: - Vê lá se te calas, senão ainda
levas mais... Olha lá garota, estou muito
agradecido pelo apoio moral que me deste.
Não é para pagar a tua gentileza, mas toma
esta nota. Não, não me agradeças. Vou
acompanhar-te até à porta, e quem sabe ...
Dora: - Muito obrigado, senhor Gustavo!
Vou-me já embora, mas antes lhe peço que não
empurre mais a senhora, embora ela tenha
procedido muito mal. Boa Noite!...
Lena: - Continuo a não compreender e cada
vez estou mais surpreendida. Tu deste aquela
nota de cinquenta euros à rapariga, e,
tiraste-a do teu ordenado que ainda não me
tinhas entregue ?! ...
Gustavo: - Pois, pois isso já pertence ao
passado. Isto agora vai mudar e muito de
figura. Olha lá, passa-me aquela garrafa de
vinho. Depressa, não ouviste?... Não esteja
para aí de boca aberta e com esse ar
espantado...
Lena: - Tu, tu a beberes vinho?!... E pela
garrafa?... E vais beber toda?... Ai como
está tão diferente!
(((Efeito Especial)))
Toque de campainha da porta
A campainha volta a tocar e aparece a
“sogrinha”…
Gustavo: – Eu é que vou abrir… Olha, olha
quem está aqui!... Olhe lá, minha querida
“sogrinha” o que vem cá fazer?... Aceite já
o meu conselho e vá para sua casa muito e
saia da minha vista rapidamente. A minha
casa não é nenhum laboratório de ensaios...
Bem, só se você quer ser transformada numa
retorta...
Sogra: - Mas olhe lá, “querido” genro,
você está morto, morto... Ou estava morto?!
...
Lena: - Mãezinha, mãezinha, tome atenção!...
O Fernando empurrou-me, gastou dinheiro do
ordenado antes do me entregar, e imagine:
bebeu uma garrafa de vinho! Ele está muito,
muito diferente, PARA MELHOR!!!
Sogra: - Ah sim... Minha querida
filhinha?... Ainda bem!
Narradora: - E a sogra do Gustavo, juntando
as mãos e olhando para o céu, como que
interrogando os “deuses” murmurou:
Sogra: SERÁ QUE DESTA VEZ É QUE VOU
SER AVÓ ? ...
FIM
Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande -
Portugal